8 de junho de 2008

“Urbanizar” e “Embelezar” - As praias de Olinda na mira dos higienistas e o confronto com a cultura marítima (1930 - 1942)

Alcileide Cabral do Nascimento
Profª de História da UFRPE/
Doutoranda em História pela UFPE
alcicabral@uol.com.br
Revista Eletrônica Cadernos de Olinda
RESUMO
Desde o século XIX, o discurso médico-higienista ganhou força e adeptos, invadiu o cotidiano, entrou nos lares, imiscuiu-se nos cuidados com o corpo. Entre 1930-1942, novas práticas e novos procedimentos foram recomendados, entre eles o banho de mar tido, a partir de então, como saudável. Isso gerou uma procura das camadas ricas e médias pelas praias onde só havia esparsas casas cobertas de palhas, morada das gentes do mar, dos pescadores artesanais, organizados precariamente nas colônias. Nesse período, as praias de Olinda, sobretudo a do Farol, tão próxima do Recife, e com uma infra-estrutura que permitia um fácil deslocamento e uma estadia prazerosa aos veranistas, transformaram-se no balneário paradisíaco. A faixa de terraços marinhos, onde residiam famílias de pescadores e localizava-se a sede da Colônia Z-4, transformou-se rapidamente em palco de conflitos envolvendo múltiplos interesses e atores, que fundamentalmente pode ser expresso no confronto entre a cultura marítima e a burguesa, entre a tradição e a modernidade.
“Urbanizar” e “Embelezar” - As praias de Olinda na mira dos higienistas e o confronto com a cultura marítima (1930 -1942)

Como a maioria das comunidades marítimas de Pernambuco, o núcleo de pescadores de Olinda surgiu durante o período colonial e desde a sua origem parece não ter ocorrido a combinação pesca/agricultura. Assim, os pescadores olindenses possuem práticas sociais, econômicas e culturais relacionadas com o meio ambiente com o qual interagem, o mar, e conseqüentemente seu mundo de valores decorre de suas relações com o mundo natural.1
No início do século XX predominava na comunidade marítima olindense a pequena produção de pescadores marítimos artesanais, cuja quase totalidade do pescado destinava-se ao mercado. A divisão do trabalho era relativamente simples, tendo em vista que a sua organização se dava na unidade familiar, bem como se estendia ao grupo da vizinhança e a remuneração era feita pelo sistema de partilha sobre o total da captura.2
Existiam basicamente dois tipos de pesca: pesca de alto mar onde se utilizavam várias técnicas de captura como pesca de linha, de “corso” ou “corrida”, de covo ou de dormida; e a pesca costeira comumente praticada nas lamas com anzóis, redes e covos. As técnicas de captura eram simples e tinham um baixo poder de depredação e o nicho ecológico explorado era relativamente restrito.3
Atuando em um ambiente físico marcado pelo risco, pelo perigo, pela mobilidade e pelas mudanças das condições naturais com suas frágeis e rudimentares jangadas, os pescadores viviam na faina cotidiana os limites entre a vida e a morte.
Para além das inúmeras dificuldades enfrentadas pelos mesmos durante a captura do pescado propriamente dita, corriam o risco de ataque de peixes grandes, ventos fortes que dificultavam o regresso a terra, temporais que impediam a visibilidade e viravam as jangadas, a alta temperatura e a salinidade das águas que reduziam consideravelmente a capacidade de visão. Soma-se a esses perigos naturais a competitividade do ambiente físico inapropriável e indivisível como é o mar, e o desrespeito de barcaças e navios para com as pequenas jangadas, virando-as ou rasgando suas velas.
O árduo cotidiano dos pescadores no mar tinha sua continuidade na terra. A situação de miséria em que viviam refletia-se de um lado nas moradas simples, apenas cobertas de palhas de coqueiro, no analfabetismo, nas diversas doenças e vícios que portavam como verminoses, sífilis e alcoolismo. Por outro lado, agravava-se com as relações de dependência que mantinham com os demais membros das comunidades marítimas — pombeiros ou peixeiros e comissários, intermediários responsáveis pela distribuição e comercialização do pescado.4
Segundo alguns pescadores, em Olinda como em todo litoral pernambucano, os comissários de peixes eram antigos mestres de jangadas que passaram progressivamente a se diferenciar e ascender socialmente através do acúmulo de pequenas economias, o que possibilitou, posteriormente, a aquisição de algumas jangadas e apetrechos de pesca (covos, redes, linhas, etc) como afirma uma entrevistada:
“…tinha , por exemplo, um dos irmãos de Salatiel e Israel, era o Antônio Félix da Silva, mas chamavam ele de Antônio Cara de Talho, porque ele tinha uma cicatriz no rosto. Aí ele arrumou um certo dinheirinho e ficou ali com aquele negócio. Fez aquela palhoça grande, daquele tamanho, e ali serviu o peixe, chegava ali e despejava…Era pescador, o Antônio Cara de Talho, mas depois ele deixou , ficou somente no ramo da coisa”.5
Apropriando-se do saber-fazer dos pescadores especializados em fabricar artesanalmente jangadas e apetrechos de pesca como covos, redes, linhas etc, ora fornecendo material para sua confecção, ora comprando-os já fabricados, assistindo os pescadores idosos ou doentes, comprando remédios ou providenciando assistência médica e, muitas vezes, coagindo fisicamente, os comissários conseguiram estabelecer com os pescadores uma relação de crescente ascendência e sujeição.6
É, pois, neste contexto que foi fundada a Colônia de Olinda, Z-4, como outras 14 colônias de comunidades marítimas espalhadas pelo litoral pernambucano no início da década de 1920. Os militares, ao estabelecerem os primeiros contatos com a comunidade marítima olindense, logo perceberam a relação de poder entre comissários e pescadores, situação essa da qual tiraram proveito para estruturar rapidamente o sistema de representação. Contudo, ao cooptarem os comissários para arregimentar os pescadores possibilitaram aos mesmos um crescente monopólio do exercício de poder, não apenas dentro da comunidade como posteriormente na própria colônia.7
Segundo o pescador Paulo José dos Santos, por volta de 1920 existiam em Olinda três comissários: “Antônio Cara de Talho, Antônio de Barão e João de Alfredo”. Antônio Félix foi praticamente o fundador da Colônia Z-4 e o primeiro interventor da mesma, como propôs o comandante Frederico Villar.8
A aliança entre os militares e comissários nesse primeiro momento de implementação do projeto, de tornar pescadores reservas navais e organizar um mercado de trabalho na atividade pesqueira não logrou apenas vitórias. Militares, burgueses e letrados confrontaram grupos sociais com interesses múltiplos que se opuseram ao projeto em curso. Essas resistências decorreram de alguns comissários aferrados à sua forma de poder, das elites políticas locais que ressentiam a intervenção da União via legislação nacional sobre a pesca aplicada através das colônias e, sobretudo, da resistência difusa, passiva e nem sempre consciente dos próprios pescadores.
A resistência de alguns comissários, como de alguns pescadores, corporificou-se principalmente na recusa ao pagamento das mensalidades e da taxa de inscrição. Pelo menos é isso que relata Paulo José dos Santos, cujo pai, José Timóteo dos Santos, foi entre 1920 e 1923 o primeiro procurador da Colônia Z-4, e nessa função, sua tarefa consistia em cobrar taxas na Praia de Conceição. Segundo o pescador, teria ele ido ” a casa de um cidadão que tinha na praia de Conceição, camarada que se chamava Manoel do Ouro. Era dono de jangada lá, mas tinha os pescadores dele que não queria pagar… Deu trabalho pra convencer que ele devia pagar. Ninguém queria pagar nada “. Os pescadores diante da sua profunda pauperização, negavam-se a pagar as suas mensalidades ou recorriam aos comissários para quitarem suas obrigações junto à colônia. Em decorrência, alguns destes também se negavam a pagar os 1000 réis mensais de cada pescador, que em 1920, equivalia há “jóia” isto é, à taxa de inscrição e à mensalidade.9 Segundo uma entrevistada, muitos pescadores olindenses revoltaram-se muito contra os comissários e contra a colônia, o que os levou a se mudarem “pra outras praias ou colônia”, negando-se a viver em sua comunidade original.10
Além desses encargos impostos pelas colônias, as elites locais, encasteladas nas prefeituras, cobravam impostos sobre profissão, posse das embarcações e sobre comércio do pescado. Esses impostos eram considerados ilegais pela nova legislação pesqueira, em vigor desde 1923. Assim, esta situação resultou em constantes pedidos de interferência do presidente da colônia Z-4 à Confederação e desta à Confederação Geral dos Pescadores do Brasil (CGPB) e ao Capitão dos Portos para eliminação desses impostos. 11
A política de formação de um mercado de trabalho no setor pesqueiro e, conseqüentemente, de qualificação de uma mão de obra para as futuras indústrias de pesca e a constituição de uma reserva naval para a Marinha, tornou-se prioritária a partir da gestão de Cardoso da Fonte, em 1926, como presidente da Confederação das Colônias de Pescadores de Pernambuco. A Colônia Z-4, como outras congêneres do estado e do país, fundou escolas, grupos de escoteiros do mar e efetivou a oficialização das atividades lúdicas e cerimônias dos pescadores olindenses, transformando-as em comemorações “cívicas”.
As escolas da Colônia Z-4 enfrentaram dificuldades semelhantes às demais escolas espalhadas pelo litoral: falta de prédio; mobiliários escassos e inadequados; subvenção federal e estadual — para despesas de salários de professores e impressos — irregular e insuficiente; e a “granítica resistência” dos pescadores na recusa da matrícula e freqüência de seus filhos nas escolas.
Visando à formação militar dos pescadores e de seus filhos foram criados grupos de escoteiros do mar. Esses grupos, surgidos durante a gestão de Carlos Moreno, presidente da Colônia Z-4 e incentivados por Cardoso da Fonte, foram em sua maioria efêmeros, entre outras razões pela rotatividade dos participantes, pela falta de instrutores e, segundo o presidente da Confederação estadual, pela impossibilidade de fornecer uniformes, proporcionar excursões, acampamentos, jogos públicos etc, enfim, pela absoluta miséria em que viviam os pescadores e seus filhos, os grupos de escoteiros redundaram num verdadeiro fracasso. No início de 1930, estava em atividade em Olinda apenas um grupo de escoteiros, funcionando de forma precária e irregular. Assim, o projeto de modernização do setor pesqueiro que pretendia constituir uma reserva naval e organizar um mercado de trabalho aportou a virada da década em plena crise, agravada com o movimento político-militar de 1930.
Entre 1930 a 1942 o discurso médico-higienista invadiu o cotidiano, entrou nos lares, imiscuiu-se nos cuidados com o corpo. Novas práticas e cuidados higiênicos e salubres foram recomendados, entre eles estava o agora saudável banho de mar, que gerou uma procura das camadas favorecidas, ricas e médias, pelas praias onde só havia até então, esparsas casas cobertas de palhas, morada das gentes do mar, dos pescadores artesanais, organizados precariamente nas colônias. Nesse período, as praias de Olinda, sobretudo a do Farol, tão próxima do Recife, e com uma infra-estrutura que permitia um fácil deslocamento e uma estadia prazerosa aos veranistas, transformaram-se no paraíso do desejo. A faixa de terraços marinhos, onde residiam 42 famílias de pescadores e localizava-se a sede da Colônia Z-4, virou muito rapidamente espaço de conflitos envolvendo múltiplos interesses e atores, que fundamentalmente pode ser expresso no confronto entre a cultura marítima e a burguesa, entre a tradição e a modernidade.
Os terrenos de marinha localizados na praia do Farol, em Olinda, foram palcos de uma contenda iniciada na década de 1920, acirrada a partir do movimento político-militar de 1930 com o Estado Nacional e, finalmente, resolvida vinte anos depois, a favor dos grupos dominantes locais.
As sucessivas legislações (1912, 1917,1923 e 1924), principalmente o decreto nº.16184 de 1923, estabeleciam a preferência para aforamento de terrenos de marinha para os pescadores e suas colônias. Esse direito fundamentava-se na premissa de que os terrenos de marinha pertenciam à União. Assim, em 1920 o Comt. Frederico Villar, segundo o pescador José Martiniano de Melo, conhecido por Calango, demarcou “uma área de terreno na beira da praia para os pescadores fazer suas casas de moradas e suas caiçaras para guardar seus materiais de pesca”.12 Em 1921, a Colônia Z-4, com base nas leis acima referidas, solicitou aforamento de 427m da praia ao norte do Farol e, como exigia a lei, publicou 30 editais em dias úteis, findos os quais a Delegacia Fiscal do Tesouro do Estado aprovou o pedido, e o processo foi enviado ao Ministério da Fazenda para expedição de título.13
Originou-se, então, a longa controvérsia em torno dos terrenos envolvendo a Colônia Z-4 e as 42 famílias de pescadores que residiam naquele terreno, a União, o município que declarava ser o proprietário legítimo das terras, o engenheiro Henrique Magalhães, a companhia inglesa de telégrafos, The Western Telegraph Company, e posteriormente o português Manoel Dias.
Logo que o terreno da praia do Farol foi requerido em aforamento pela Colônia Z-4, despertou interesses de particulares. Apareceu, então, o Sr. Henrique Magalhães que, aconselhado por um parente, o engenheiro Álvaro Silva, requereu o mesmo terreno em aforamento. Posteriormente, o primeiro juntou ao processo uma procuração tornando Álvaro Silva seu representante. Contudo, as pretensões do engenheiro foram obstaculizadas pelo falecimento inesperado de Henrique Magalhães. Mas o engenheiro Álvaro Silva não desistiu das terras, e ainda em 1934 defendia a validade de sua procuração e a defesa dos “interesses” do falecido.14
Como surgiram interesses múltiplos, o processo da Colônia Z-4 “anos depois” desapareceu da Delegacia Fiscal. Outras exigências foram feitas: a primeira, solicitava provas de que o signatário da petição era de fato presidente da Colônia e se tinha capacidade jurídica para requerer os terrenos em nome dela; a segunda, exigia uma declaração esclarecendo se o terreno requerido era urbano ou suburbano. Coube, pois, à Capitania dos Portos e à Confederação estadual satisfazer a primeira; a segunda exigência foi atendida pela Prefeitura de Olinda, até então sem predileção pelas terras. Assim, o processo voltou para o Rio de Janeiro, já no oitavo ano.
A falta de interesse por parte da Prefeitura de Olinda nos terrenos em disputa era apenas temporária. Durante a década de 1920, Olinda passava por um processo de transformação. Apesar de ser considerada uma “cidade dormitório” com a maior parte da população trabalhando no Recife, ganhava outros atributos e adequava-se ao lazer e à diversão da elite pernambucana e aos setores da classe média em expansão, tornando-se, no verão, uma cidade balneária.
Aos atrativos naturais — sol e praias limpas — aliava-se a infra-estrutura, luz elétrica, transportes, água, oferecendo comodidade e higiene tão afeitos aos hábitos aburguesados e tão em voga na mente, na cultura, nos costumes da época.15 O prefeito de Olinda, João Cabral de Vasconcelos, reconhecia que devido às praias da cidade serem “amplas”, eram “sempre preferidas” para a “estação balneária”, levando a cidade a se desenvolver “rapidamente em toda a faixa do litoral”.16
Contudo, esse “paraíso” estava ameaçado pelas ressacas e pelo avanço do mar intensificado em 1915 com o molhe de Olinda, construído para o melhoramento do porto do Recife. Em dezoito anos o mar havia avançado duzentos metros, engolindo na “sua fúria” inúmeros prédios, comprometendo a fortuna particular e a arrecadação municipal. Ao mesmo tempo provocava a destruição das praias do Carmo e Milagres, restando apenas a do Farol.17
Assim, a praia do Farol, que desde os anos vinte abrigava pescadores com seus pobres casebres de palha de coqueiro, passou a ser avidamente disputada e cobiçada por outros grupos sociais que em comum viam a necessidade de remover aqueles “casebres”, que “não só afeiam sobremaneira o lugar como impedem a servidão, vista, gozo e acesso do público à praia”.18
Nessa controvérsia surgiu, no final de 1929, mais uma pretendente ao aforamento dos terrenos: a The Western Telegraph Company, empresa de telégrafo inglesa que, através de cabos submarinos, passou a conectar todas as capitais litorâneas de Porto Alegre a Manaus, ligando ainda o Brasil a Buenos Aires, a Nova York e a Londres.19 A companhia inglesa dizia ser proprietária de toda a faixa de terra da praia do Farol, mediante a doação da Prefeitura, de um terreno fronteiro em “domínio útil” para ser instalada a estação de lançamento de cabos submarinos. No entanto, os técnicos da empresa verificaram a impossibilidade da colocação dos referidos cabos, devido as três linhas de recifes paralelas à praia, o que os levou a instalar a subestação em Salgadinho.20 A The Wertern Company decidiu, então, lotear os terrenos e vendê-los, inclusive a faixa de terra requerida pela Colônia e na qual residiam 42 famílias de pescadores.21
Aquela faixa de terra, a essa altura, era bastante valorizada. Como explicava o Prefeito ao Diretor da Delegacia do Tesouro Nacional, compreendia “uma área onde prenuncia grande desenvolvimento de construção, pois é para os lados do Farol, que com a solução próxima do abastecimento d’água, tende a processar-se o desenvolvimento da cidade, como indica a procura que já se acentua de terrenos para construção naquele local”.22
A Colônia, por sua vez, mobilizava-se e, em março de 1930, cumpriu novas exigências da Delegacia do Tesouro Nacional anexando ao processo uma planta do terreno e uma certidão da Capitania do Porto, provando ser os seus ocupantes todos pescadores matriculados. Mais uma vez os documentos foram desviados daquela repartição, o que não impediu, oito meses depois, que o terreno fosse declarado abandonado.23
A Colônia adquiriu, então, material visando construir a sua sede: tijolos, telhas, cimento, cal, madeira, representando alguns contos de réis — fruto da “economia dos pescadores”. A Western protestou na justiça e a Colônia foi intimada a ” Não turbar a posse! sob pena de multa”. Além disso, foi impedida de remover os materiais que posteriormente foram roubados.24(Grifo meu)
Após o loteamento do terreno, Armando do Passo, presidente da Colônia Z -4, enviou um memorial ao ministro do trabalho, Lindolfo Collor, relatando os fatos. É oportuno notar que esse documento não foi enviado ao Ministério da Marinha, oficialmente responsável pelos serviços da pesca, nem ao Ministério da Agricultura, que estava prestes a reassumir a administração daquele setor econômico. O que sugere a repercussão simbólica que teve a criação do Ministério do Trabalho como uma instância que, se acreditava, iria, efetivamente, resolver os problemas dos trabalhadores.
Era um relato dramático dos acontecimentos, incisivo nos argumentos em defesa dos interesses da comunidade. Primeiro, ao expor a legislação que dava preferência dos terrenos de marinha às colônias e aos pescadores, o presidente da Colônia Z-4 valia-se dos instrumentos que a própria lei oferecia e questionava se a última servia apenas para legitimar a dominação das classes privilegiadas.
O exemplo flagrante do papel e da aplicação da lei estava corporificado no “direito” que a companhia inglesa alegava ter sobre a referida faixa de terra, pois à medida que a municipalidade a concedeu para um fim específico, e os mesmos se mostraram inadequados, seria correto supor que os direitos da companhia sobre os terrenos cessariam, e eles passariam para o domínio do município. Contudo, não foi este o desenlace. A The Western não comprou o terreno à Prefeitura, recebeu-o para um fim preciso, e para o qual não serviu, loteou e colocou-o à venda com o aval da municipalidade. Segundo denúncias na imprensa, a empresa inglesa ainda era devedora da União de um elevado valor correspondente a 13 mil contos de réis e, conseqüentemente, estava impedida de requerer quaisquer benefícios às repartições federais.25
Em seguida, Armando do Passo descrevia as dificuldades que enfrentava: perseguição por parte da The Western, tratamento diferenciado e humilhante pelos funcionários da Delegacia Fiscal, elevadas despesas jurídicas, destruição e desvio do material adquirido para construção da sede e das escolas, vexames com citações para comparecimento em juízo.26 O clima de ansiedade, instabilidade e incertezas reforçavam o descrédito que os pescadores já nutriam pela colônia. Segundo o presidente da Confederação das Colônias de Pescadores de Pernambuco, “a Z-2 e a Z-4 são vítimas de intensa descrença por parte de seus associados, porque sentem que a colônia é uma organização fraca, sem capacidade para se defender”.27
As dificuldades e obstáculos criados por interesses locais, privados e públicos (e até europeus), face à estratégia nacional de promover a melhoria da condição de vida dos pescadores e à modernização da pesca artesanal em organizações cooperativas, fragilizavam a colônia à medida que essa não conseguia garantir o que era direito respaldado por lei — os terrenos onde residiam parte dos pescadores e suas famílias. A crise de legitimidade que afetava o sistema de representação, Confederação Geral, federação estadual e mais particularmente as colônias, foi percebida e expressada pelos pescadores. Esse ressentimento contra as colônias de pesca que, embora extremamente agressivas na cobrança das mensalidades, demonstravam-se incapazes de proteger os pescadores contra aqueles que cobiçavam o espaço que ocupavam, tornou-se manifesto no momento que o presidente Washington Luís foi deposto, correndo célere por todo o litoral que “a revolução anulara todas as leis” e, segundo asserção do pescador Simão Synclético da Colônia Z-2, localizada no Pina, as colônias eram “uma organização reacionária engendrada pela burguesia”.28
Segundo o tenente Alberto Vasconcelos, essa “asserção filauciosa e enigmática” abalou de forma “extraordinária” o “status quo” das colônias que deixaram de arrecadar as mensalidades pela recusa dos pescadores, e foram forçadas a parar alguns serviços assistenciais que ofereciam.29
Vale observar que é difícil para nós sabermos se a “enigmática” declaração do pescador Simão Synclético era oriunda da consciência crítica aguçada ou, na hipótese mais provável, de seu envolvimento com organizações sindicais ou partidárias. Contudo, pela repercussão que causou nas comunidades marítimas, sugere que a leitura e a interpretação da Revolução de 1930 foi traduzida para o cotidiano dos pescadores e, talvez se estivermos certos, para eles, a redenção da “massa oprimida” passava pela extinção das colônias.
Tratando aquela faixa de terra como propriedade federal, a Delegacia do Tesouro Nacional procurou regularizar a situação de ocupantes e posseiros, através da cobrança de foro e laudêmios devidos, bem como iniciou o aforamento de lotes a terceiros. Os últimos procedimentos, entretanto, motivaram João Cabral de Vasconcelos, prefeito do município, em 1933, a apelar para o governador de Estado, Carlos de Lima Cavalcanti. Indignado e relutante com a atuação da Delegacia do Tesouro Nacional que, segundo ele, vinha “turbando a posse de Olinda”, argumentava junto ao governador que os referidos terrenos pertenciam ao patrimônio de Olinda, assegurado pelo Foral de Duarte Coelho de 1537, e sobre os quais a União não tinha direito algum. Exemplificava o Rio Grande do Sul, que fez o governo federal reconhecer pelo Decreto nº. 21315 de 02 de abril de 1932 o domínio daquele e do Estado sobre “terrenos marginais de rios públicos, ilhas e lagoas”.30
Os grupos políticos locais não ficaram indiferentes à ameaça de uma intervenção do poder central no que antes constituía domínio exclusivo, área de poder e exploração dos mesmos. Para defender seus interesses, cercavam-se de todas as leis, inclusive as originárias do período colonial, que garantiam ao município a propriedade e a autonomia sobre aquelas terras avidamente disputadas. Tinham ainda a seu favor o precedente de casos similares, a exemplo do Rio Grande, onde, pelo que sugere, a União cedeu diante das pressões dos grupos dominantes locais.
Como vimos, o Município tinha interesses específicos sobre os terrenos da praia do Farol. Propagando a “urbanização”, o “embelezamento” e o “progresso” da cidade, solicitou ao interventor federal providências para coibir o avanço do mar e passou a defender o loteamento e comercialização dos terrenos, o que implicaria na expulsão ou na transferência das famílias de pescadores residentes no local.31
Em 1934, o processo em torno daquela faixa de terra estava encerrado com parecer jurídico da Delegacia do Domínio da União a favor da The Western Telegraph Company. O presidente da Federação Estadual dos Pescadores lamentava que todos os esforços da Colônia Z-4 e da própria Federação tivessem sido inúteis. Segundo ele, as maiores “vítimas” seriam os pescadores, que não teriam ” onde encalhar suas embarcações, cessando a pesca na zona porque a praia seria ocupada pelos futuros proprietários “. Apesar dessa constatação, apelou pela intervenção oficial da Divisão de Caça e Pesca que poderia conceder o terreno à colônia ou transferi-lo para a alçada do Ministério da Agricultura, que o consideraria zona de pesca. A última opção, ponderava, seria a melhor porque acabaria de uma vez com a “querela”.32
A companhia inglesa tratou imediatamente da venda dos referidos terrenos, pedindo a bagatela de 2000 libras. Dizia-se que esse valor era “inferior à avaliação feita pela repartição de Viação e Obras Públicas”. As terras foram adquiridas, então, pelo capitalista lusitano, Manoel Dias dos Santos, que tinha anunciado a pretensão de “dividi-lo em lotes destinados à venda a quem pretende construir casas”.33 A situação dos pescadores tornava-se mais difícil. Quatros meses haviam passado e Alberto Vasconcelos não recebeu qualquer resposta da Divisão de Caça e Pesca. Ainda assim, insistiu na ajuda do Comt. Frederico Villar, membro do Conselho de Caça e Pesca, a fim de impedir que o português efetivasse suas intenções.34
Vale observar que o Código de Caça e Pesca aprovado pelo Decreto nº 23672 de 2 de janeiro de 1934, considerado “modelar pelos mais entendidos organizadores e legisladores da pesca no mundo civilizado”, garantia às colônias, federações e CGPB ” direito à cessão gratuita dos terrenos de marinha e acrescidos, necessários às suas instalações federais mediante termo de ocupação perante o representante local da Diretoria do Domínio da União, que fará sua demarcação isenta de qualquer taxa, emolumentos, selo e despesas, dando-lhes posse de acordo com a legislação em vigor”. O parágrafo único do mesmo artigo proibia que “os terrenos ocupados pelas associações de classe de pescadores, ou por estes, fossem objeto de aforamento a terceiros”.35
Os fatos revelavam que esta lei não era contestada, apenas, pelo Município que reivindicava seu direito sobre os terrenos, como não era cumprida nem mesmo pela Delegacia do Domínio da União, haja vista parecer da mesma a favor da companhia inglesa. Além disso, a lei isentava as colônias de quaisquer ônus como “taxa, emolumentos, selo e despesas”, isenção essa sem aplicabilidade real, tendo em vista que a própria Colônia Z-4 havia gasto desde o início do processo quinze contos de réis e não tinha mais recursos para dar continuidade ao mesmo.
O discurso de amparo às “centenas de milhares de brasileiros que vivem da pesca” confrontava-se com a realidade, demonstrando o desinteresse do Estado para com os pescadores. Como afirmava o ex-ministro da Educação, Gustavo Capanema, “Desde que chamou a si a organização da pesca, cuidou o governo de obter favores aduaneiros para as indústrias, procurando também reduzir e unificar os fretes” além de prestar “assistência técnica aos industriais do pescado”. A indústria dos derivados da pesca era efetivamente a “menina dos olhos verdes” do Governo e para ela eram destinados recursos e apoio técnico.36
A atmosfera de instabilidade e indefinição que envolveu os pescadores olindenses tornou-se mais tensa. De um lado, os pescadores enfrentavam a ameaça de expulsão dos terrenos onde habitavam, agora pelo luso Manoel Dias; do outro, continuavam a ser explorados pelos comissários que lhes subtraíam “mais de nove décimos do produto do seu trabalho, sob a cavilosa alegação de débitos que nunca se saldam”, ao mesmo tempo em que eram pesadamente tributados pela municipalidade.
A modernização urbana e a valorização dos terrenos da praia do Farol, levando-a a se constituir na melhor e mais importante estação balneária durante o verão, talvez tenha motivado a melhoria dos mocambos. Eram estes, durante essa estação, alugados para os veranistas e nem sempre pela livre vontade dos pescadores, mas como forma de saldar dívidas junto aos comissários. Nesse sentido, o presidente da Colônia Z-4, em nome de sete pescadores residentes na praia do Farol, solicitou à Prefeitura licença para “recobertura e ligeiros reparos nas casas”. A municipalidade não apenas indeferiu o pedido alegando que os referidos proprietários encontravam-se em débito, como sugeriu a desapropriação por “utilidade pública” da casa do pescador José Vitorino, que enviou outra solicitação provando que nada devia à Prefeitura. Dessa vez, sem subterfúgios, colocava-se que o mocambo “em questão” achava-se “localizado no novo Bairro do Farol, fora do alinhamento da nova Avenida Beira Mar”. O prefeito declarava ser, na verdade, “absurda e atentatória ao progresso de Olinda” a existência dos casebres dos pescadores na belíssima praia do Farol.37
Com o mesmo empenho com que a Prefeitura reafirmava seu domínio sobre os referidos terrenos, o presidente da Federação, Tenente Alberto Vasconcelos, esmerava-se com tenacidade em busca de apoio procurando mobilizar e envolver as instâncias maiores, como a Confederação Geral dos Pescadores do Brasil e a Divisão de Caça e Pesca. Buscando soluções para a resolução do conflito, Vasconcelos questionava duplamente os postulados do projeto de modernização do setor pesqueiro e da cidade de Olinda ao sugerir que uma das alternativas para permanência dos pescadores na área em questão seria a efetivação das “boas intenções do governo” através da “construção higiênica e outros postulados da civilização que o governo julga merecer os pescadores ( e atende à estética)”. Deixava implícito que o progresso passava pela exclusão da gente humilde e não pela sua integração.38
Em carta ao Delegado da Federação junto à Confederação Geral dos Pescadores, Vasconcelos relatava que as plantas com as delimitações do terreno ocupado pelos pescadores haviam desaparecido na Delegacia Fiscal e outros documentos “substituídos criminosamente”. Além dessas irregularidades ocorridas com a aquiescência e envolvimento de funcionários públicos, o capitalista lusitano, que adquiriu as terras, tinha a seu favor o “Prefeito de Olinda, a complacência do governador do Estado, a displicência da Divisão de Pesca” e, como seu advogado, o Presidente da Assembléia Legislativa Estadual que era também “acatado professor da Faculdade de direito”, Dr. Antônio Vicente de Andrade Bezerra. De forma que diante dessa associação de forças e poder, era certo que os pescadores não teriam chance alguma sem a imediata intervenção das instâncias federais. Com desagravo, o mesmo concluía que a “Nacionalização da Pesca” e os diversos departamentos oficiais “que deveriam cuidar dela” não passavam de ” um motivo para criar-se repartições e dar-se sinecuras aos compradores da política de cuja dependência resulta a obliteração do cumprimento do dever, para não desagradar… ” Portanto, as leis serviam apenas para alimentar a ” pueril fatuidade de que somos um povo independente ” a servir ” de pasto à desbragada advocacia administrativa, que tem enriquecido quanto safardana se disponha a substituir o cérebro pelo estômago “.39
Não há dúvidas de que ao criar órgãos para gerir, encaminhar, decidir a multiplicidade de problemas que envolvem a pesca, o Governo Vargas garantiu aos oficiais da reserva da Marinha a sua permanência na máquina estatal. Assim, a atuação dessa burocracia administrativa, herdeira de práticas clientelistas e aliada aos poderes locais, possibilitou a defesa dos interesses dos grupos econômicos e politicamente dominantes, em detrimento dos grupos despossuídos. Dessa forma, a prática do aparelho burocrático contradizia o discurso do Estado em favor dos pescadores.
Enquanto aumentava a angústia, a insatisfação e a ansiedade dos pescadores pela premente possibilidade de serem expulsos, crescia o sentimento de “impotência” dos presidentes da Colônia e da Federação por não conseguirem evitar o despejo dos mesmos. Para a municipalidade de Olinda, o futuro bairro do Farol era ponto pacífico, como demonstrava o grande número de novas construções residenciais. O “progresso” era irremediável. Nesse sentido que o Secretário da Fazenda do município pedia providências ao Prefeito para que as “avenidas paralelas ao mar até Casa Caiada, duas ruas transversais e uma praça onde já existem várias edificações” fossem logo ” denominadas, a fim de poder esta Prefeitura mandar colocar as devidas placas e numerá-las a bem do interesse de seus habitantes “, e também do município que poderia iniciar a cobrança do imposto predial.40
Alberto Vasconcelos, por ocasião do envio do relatório das atividades referentes ao ano de 1936, tornava público sua decepção e descrédito em relação à estratégia de desenvolver a indústria de beneficiamento de pescado e transformar as colônias em cooperativas de pesca. Passados seis anos da revolução que prometera um país sob o regime da lei, a prática dos governantes demonstrava e reforçava o contrário. Segundo ele, a lei tornava-se cada vez mais ” para os outros”, sendo inatingíveis “o predomínio do proprietário de terras, do senhor de engenho, do usineiro, do engravatado, do filho da família, do chefe político, do estrangeiro ”.
Os exemplos de infração ao Código de Caça e Pesca não se limitavam a Olinda, mas se espalhavam por todo o litoral e eram praticados pelos “inatingíveis”: currais de peixe em toda parte, inutilização de aparelhos de pesca encontrados nos rios pelos donos de terra, ” funcionários públicos, ocupando automóveis do serviço oficial, com as cores nacionais ou estaduais à porta, em pleno dia ” lançando bombas de dinamites na embocadura dos rios ou nas enseadas. A lei — continuava Alberto Vasconcelos — confrontava-se com a prática, os costumes, e o poder dos grupos locais, e embasava a percepção de que a mesma, além de parcial, era efetivamente “para os outros”. Por outro lado, se analisarmos que as infrações sugerem um ato de contestação e resistência, poderemos compreender que o confronto, embora vivido a nível local, entre proprietários de terras e pescadores de mangues e rios, por exemplo, reflete a nível mais amplo a não aquiescência de setores da elite local com alguns aspectos do projeto de modernização da pesca em curso, ao sentir a dupla intervenção do Estado tanto no seu domínio, definindo o que doravante pertenceria ao patrimônio da União, como o desatrelamento dos pescadores — massa de manobra nos períodos eleitorais — das malhas de dependência e subserviência dos chefes políticos.41
No que dizia respeito aos pescadores, a ênfase da legislação incidia apenas nos deveres e obrigações, como a obrigatoriedade de pertencer às colônias, de fornecer à diretoria destas dados relativos à qualidade e quantidade do pescado capturado, e a localização do pesqueiro, entre outros. Quanto aos direitos e vantagens como os terrenos de marinha, isenção de impostos municipais, liberdade de vender o peixe diretamente, além de restritos, não eram cumpridos. Como Thompson ressalva, a lei, para ser cumprida enquanto norma social válida para todos, precisa obter a aquiescência dos dominados, e quando isto não se dá, expressando a resistência consciente ou não dos governados, os governantes geralmente se valem da coerção, repressão e violência para fazer valer a lei e seus interesses específicos.42
Assim “a granítica resistência passiva dos pescadores”, como costumavam referir-se tanto Cardoso da Fonte, ex-presidente da Federação, como Alberto Vasconcelos, que exercia o cargo desde 1930, indicava a não aquiescência dos pescadores pernambucanos ao projeto de modernização do setor pesqueiro e concretizava-se no cotidiano descumprimento da lei, através da deliberada ausência dos filhos na escola, da recusa ou impossibilidade de pagamento das mensalidades das colônias, da omissão de informações preciosas, como a localização, espécies e volumes dos pesqueiros. A fragilidade e a falta de legitimidade do sistema de representação levava Vasconcelos a declarar um crescente sentimento de impotência, duplamente vivido por não ter “moralidade para exigir dos pescadores cumprimento do dever” e por não possuir “força para defender-lhes o direito”.43
A crise perdurou todo o ano de 1937, com o agravante da pressão psicológica que Manoel Dias vinha fazendo ao propalar a vitória sobre os terrenos de marinha e a conseqüente expulsão dos pescadores do local, que teriam seus casebres demolidos e engolidos pela “expansão urbanística da cidade”, deixando-os verdadeiramente “alarmados”.
A probabilidade da expulsão dos pescadores do local não pertencia mais ao reino dos boatos. Era algo exeqüível, próximo e real. Esse momento crítico e contingente levou o secretário da colônia a vender sua casa localizada na praia do Farol, em flagrante delito a todas as leis federais e municipais que proibiam tal procedimento. O secretário Lourival Rubens Gonçalves, aproveitando-se do cargo que ocupava, vendeu seu mocambo a Raul de Sá Cavalcanti de Albuquerque, membro de uma das famílias tradicionais da aristocracia açucareira pernambucana, isentando-se de correr qualquer risco.44
Nessas condições, os pescadores não tinham muitas razões para acreditar nas “boas intenções” das colônias, federações, Confederação, Divisão de Caça e Pesca e dos postulados do projeto de Cardoso da Fonte, como instâncias e horizontes para melhoria de sua condição de vida. Ao contrário, o medo de que “suas terras” fossem tiradas, aproximavam-nos daqueles que efetivamente os socorriam em momentos difíceis como este — os intermediários. Parafraseando Cardoso da Fonte, os seus exploradores não precisavam corromper a sua boa fé, aproveitarem-se da sua “crassa ignorância”, nem armar intrigas ou confusões, embora nessa situação, sem dúvida, tirassem “o melhor partido”.
Finalmente, em 1942 os pescadores da badalada praia do Farol foram indenizados e transferidos para o morro Amaro Branco em Olinda. Segundo Antônio Félix da Silva, um dos comissários de peixe da localidade, foi ele quem fez a proposta decisiva e definitiva a Manoel Dias:
“… então com a minha habilidade eu fui a ele e disse a ele: tem aquele terreno do Amaro Branco, aquele morro, não é? E aquilo ali Manoel Dias não precisa daquilo e pode nos dar em troca disso aqui. E assim foi feito, a proposta a Manoel Dias, ele aceitou não é? (…) Aí nós fizemos a troca, não é? Botou-se os 42 mocambos abaixo viu e ficamos à toa, perambulando aqui, ali e acolá e tá e coisa, enfim é quando nós mandamos lotear o primeiro loteamento.Deu 62 lotes de 28 x 27″.45
Como vemos, a solução da questão dos terrenos da praia do Farol, onde residiam as 42 famílias de pescadores e localizava-se a sede da colônia e as caiçaras, resultou do esforço de um comissário, Antônio Félix da Silva, o que demonstra o poder dos intermediários, e de que forma os mesmos legitimavam as relações de dependência internas à comunidade marítima, à medida que estes, e não as agências governamentais, protegiam e defendiam efetivamente os pescadores.
Com o fim de aprovar o acordo previamente estabelecido por Antônio Félix com o lusitano, foi convocada uma assembléia comparecendo a diretoria, os três capatazes, os dois comissários responsáveis pelo entreposto da colônia, Antônio Félix e Marcos Evangelista, o contador e o seu auxiliar, e mais 46 pescadores.46
O presidente da Colônia, Arthur Serpa, propôs uma ação judiciária de desistência, recebendo a Colônia em troca “como doação e a título de indenização os terrenos da rua São Miguel e um lote na praia”. A mesma teria como obrigação indenizar os proprietários dos 42 mocambos a serem desapropriados, permanecendo na praia apenas a sede. As despesas seriam financiadas com um empréstimo do Sr.Manoel Dias no valor de R$ 12:000$000 (doze contos de réis). Todas as partes acordaram em desistir da faixa de terra para que o Município iniciasse o trabalho da projetada Avenida Beira-Mar. Os terrenos que foram doados à Colônia passaram a ser foreiros à Prefeitura de Olinda. Dessa forma, conciliavam-se os múltiplos interesses em jogo e os pescadores sairiam da área destinada ao lazer da elite.47
Assim, o embate em torno da questão dos terrenos de marinha demonstra as limitações e contradições da estratégia que visava ao desenvolvimento do mutualismo e do cooperativismo entre os “boníssimos praianos”, através dos quais sairiam do “primitivismo” e ingressariam na “civilização”. Essa civilização ao avançar sobre a comunidade marítima, requeria a liberação do espaço, a higienização da área dessa “gente primitiva”, “doente” e “viciada”. De forma velada, os “civilizados” pareciam nutrir um sentimento de repulsa e ojeriza pelos praianos, reafirmando a diferença social e cultural, ao redefinir o espaço geográfico a ser habitado pela “arraia miúda”.48
NOTAS

1 Cf.: Silva, Luis Geraldo. Pescadores, Militares e Burgueses: Legislação Pesqueira e Cultura Marítima no Brasil (1840 -1930). Recife: UFPE, 1991. Dissertação de Mestrado em História. p. 54; Cascudo, Luis da Câmara. Jangadeiros . Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, s/d.; Maldonado, Simone. C. A Caminho das Pedras: percepção e utilização do espaço na pesca simples. In: Diegues, Antônio Carlos S. e Sales, R. R. (Orgs.) Encontro de Ciências Sociais e o Mar no Brasil. 3, SP, Julho,1988. São Paulo, Programa de Pesquisa e Conservação de Áreas Úmidas no Brasil. IOUSP, F. FORD, UICN, 1988, p.29-36; Diegues, A. C. S. Tradição e Mudança nas Comunidades de Pescadores do Brasil: por uma sócio-antropologia do mar. In: Diegues, A.C. S. e Sales, R. R. (Orgs.), Op. cit., p. 1-20.
2 Cf..: Silva, L.G. Op. cit., p. 56; Diegues, A. C. S. Pescadores, Camponeses e Trabalhadores do Mar. São Paulo: Ática, 1983. p.150-154
3 Cf.: Schubart, A Pesca nos Estados de Pernambuco e Alagoas . Rio de Janeiro, Ministério da Agricultura, 1944.
4 Cf.: Villar, F. Os problemas da Pesca no Brasil. Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1935, p.2; Relatório do Presidente da Confederação das Colônias de Pescadores de Pernambuco. De junho de 1926 à março de 1928. In: Revista Marítima (RM), Ano I, N. 1, set. 1928.
5 Cf.: Entrevista de Francisca Santos da Silva a Luiz Geraldo Silva, Paulista, 18.01.1990; Entrevista de Paulo José dos Santos a Luiz Geraldo da Silva, Recife, 19.11.1989. Apud Silva, L. G. Op. cit., p.57.
6 A análise pormenorizada da ascendência econômica e social dos comissários nas comunidades marítimas encontra-se no trabalho de Luis Geraldo Silva, já citado. Ver p. 43 e passim.
7 Cf.: Entrevista com Antônio Félix, s/d. Centro de Divisão e Pesquisa – Conselho Pastoral dos Pescadores (CDP-CPP), Cx. Colônias Pernambuco.
8 Entrevista de Paulo José dos Santos a Luiz Geraldo silva. Recife, 19.11.1989. Apud Silva, L. G. Op. cit. p. 57.
9 Cf.: Entrevista com Paulo… Ent. Cit. Apud Silva, L.G. Op. cit. p. 68.
10 Cf.: Entrevista com Francisca… Apud Silva, L.G. p.74.
11 Cf.: Vasconcelos, A. A Pesca em Pernambuco . In: Anais do 1º Congresso Nacional de Pesca. Rio de Janeiro, 1934. p. 213-215.
12 Cf.: Santos, Rosita S. Terras de Marinha . Rio de Janeiro: Forense, 1985, p.48-49; Leis nº 2544 de 4.01.1912, art.73, parágrafo 1º, n. 1; Decreto nº.16184 de 25.10.1923, art. 125, parágrafo 1º; Aviso do Ministério da Marinha de 09.12.1924 Apud Carta de Armando Flaviano do Passo, Presidente da Colônia Z-4, Olinda, ao Dr. Lindolfo Collor, Ministro do Trabalho. Olinda, 21.07.1931. CDP-CPP, Cx. Colônia; Entrevista com José Martiniano de Melo.Olinda, 27.08.1979.CDP-CPP, Cx. Colônia Z-4.
13 Cf.: Carta de Armando Flaviano… doc. cit.
14 Idem
15 Cf.: Novaes, F. Olinda, Evolução Urbana . Recife: Fundarpe/ CEPE, 1990
16 Cf.: Ofício do Prefeito de Olinda ao Interventor Federal de Pernambuco. Olinda, 19.06.1933. Arquivo Histórico Municipal Antonino Guimarães (AHMAG), Série Ofícios, Cx. 112, Vol. 24, Div. 02, Est.01c.
17 17 - Cf.: Ofício do Prefeito de Olinda ao Delegado Fiscal do Tesouro Nacional em Pernambuco. Olinda, 23.05.1935. AHMAG, Série Ofícios, Cx. 14, Div. 02, Est. 01c.
18 Idem.
19 Cf.: “Nos tempos da CTB, ITT, Western” In: LEIA, out. 1993, p.7.
20 Cf.: Carta de Armando Flaviano do Passo… doc. cit. O terreno fronteiro corresponde hoje ao bairro denominado de Bairro Novo.
21 Cf.: Ofício do Prefeito de Olinda, João Cabral de Vasconcelos, ao Diretor do Tesouro Nacional. Olinda, 11.12.1934. AHMAG, série Ofícios, Cx. 13, Vol. 36, Div. 02, Est. 01c.
22 Cf.: Carta de Armando Flaviano do Passo… doc. cit.; Carta de Alberto Vasconcelos ao dr. João Moreira. Recife, 05.05.1934. CDP-CPP, Cx. A.V. Há uma controvérsia em torno da quantidade de casas de pescadores existentes na praia do Farol. Os documentos referem-se a 32, 35 e até 42 casas. Conferir petição n.273 da Colônia Z-4 ao Prefeito de Olinda. Olinda, 1.04.1930. AHMAG, Série Petições, Cx. 32, Est.7, Div.4 e os demais documentos citados.
23 Cf.: Carta de Armando Flaviano do Passo… doc. cit.; Carta de Alberto Vasconcelos ao Dr. João Moreira. Recife, 05.05.1934 . CDP-CPP, Cx. A.V.
24 Idem; Relatório apresentado à Assembléia Geral dos Delegados das Colônias pelo Presidente Antônio Cardoso da Fonte. Pernambuco, de 04.1926 a 06.1930. CDP-CPP, Cx. F. PE.
25 Cf.: Carta de Armando Flaviano do Passo… doc. cit. Segundo Cardoso da Fonte a companhia inglesa agiu com má fé ao solicitar uma “faixa de terra de mais de 400 metros de testada” para lançar apenas 4 cabos.
26 Idem.
27 Cf.: Relatório da Confederação das Colônias de Pescadores do Estado de Pernambuco de junho/1930 a junho/1931. Recife, 01.06.1931. CDP -CPP, Cx.F. PE. A colônia Z-2, localizada na ilha do Pina, passava por situação similar a da Colônia Z-4 em relação aos terrenos de marinha que ocupava. Segundo Alberto Vasconcelos “A ilha do Pina, outr’ora abandonada, devido à existência do Lazareto, era a terra de ninguém! Fora o antigo feudo do Barão do Livramento, que diz a lenda popular, tinha, na ilha, o seu quartel geral das operações contra… o fisco aduaneiro. Além das ruínas do Quarentenário que servia de espantalho porque foi, a tempos, o isolamento de pestilentos — só havia o coqueiral nativo, as moitas de guajirão e cambuís, e… as palheiras dos pescadores. Depois das obras públicas aí realizadas — ponte de Saneamento, Estrada de Boa Viagem, estaleiros das obras do Porto e da afluência de moradores, construindo casebres ‘ a la diable’, sem arruamento, sem higiene e até sem segurança, começaram a aparecer os donos — a Santa Casa de Misericórdia encabeçando o cordão! Os pescadores foram, aos poucos, atirados ou para dentro dos mangues (e já construíram um maciço de vaza, que denominaram — o Bode) ou para os limites da faixa ocupada pelas obras complementares do Porto.” Cf.: Carta de Alberto Vasconcelos ao Comt. Villar, Recife, 07.09.1934. CPP-CDP, Cx.A.V. Grifo do autor.
28 Cf.: Relatório da Confederação… doc. cit. Recife, 01.06.1931.
29 Idem
30 Cf.: Ofício do Prefeito de Olinda ao Interventor Federal. Olinda, 10.05.1933. AHMAG, Série Ofícios, Cx. 12, Vol.24, Div. 02, Est. 01c.
31 Idem; Cf.: Ofício do Prefeito de Olinda ao Interventor Federal em Pernambuco. Olinda, 19.06.1933. AHMAG, Série Ofícios, Cx. 12, Vol.24, Div. 02, Est. 01c.
32 Cf.: Carta de Alberto Vasconcelos ao dr. João Moreira da Rocha, diretor do Serviço de Caça e Pesca. Recife, 20.04.1934. CDP -CPP, Cx. A.V.
33 Cf.: Ofício do Prefeito de Olinda , João Cabral de Vasconcelos, ao Diretor Geral do Tesouro Nacional.Olinda, 11.12.1934. AHMAG, Série Ofícios, Cx.13, Vol. 26, Div. 02, Est 01c.
34 Cf.: Telegrama de Alberto Vasconcelos ao Comt. Villar. Recife , 29.08.1934. CDP -CPP, Cx. A.V.
35 Cf.: Villar, F. Os Problemas da Pesca no Brasil. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1935; Decreto Nº 23672 de 02.01.1934. Aprova o Código de Caça e Pesca; ver especialmente Cap. V , art. 219. CDP -CPP, Cx. Divisão de Caça e Pesca – DCP.
36 Cf.: Schuwartzman, S. (Org.). Estado Novo — um auto-retrato . Arquivo Gustavo Capanema – Brasília: CPDOC, Ed.Universidade de Brasília, c 1983, p.559 e 562.
37 Cf.: Petição N.456 do Presidente da Colônia Z-4 à Prefeitura de Olinda. Olinda, 30.04.1935; petição N. 561 de José Vitorino Miranda, pescador, à Prefeitura de Olinda. Olinda, 29.05.1935. AHMAG, Série Petições, Cx. 45. Est. 7, Div.5; Ofício da Prefeitura de Olinda ao Delegado Fiscal do Tesouro Nacional em Pernambuco. Olinda, 23.05.1935; Ofício do Prefeito de Olinda ao Secretário do Interior. Olinda, 28.05.1935. AHMAG, Série Ofícios, Cx. 14, Div.02, Est.01c.
38 Cf.: Carta de Alberto Vasconcelos ao Comt. Villar. Recife, 09.01.1935; Carta de Alberto Vasconcelos ao Dr. Nehemias Gueiros. Recife, 24.07.1935; Cartas de Alberto Vasconcelos a Xisto. Recife, 31.07.1935 e 19.09.1935. CDP -CPP, Cx. A. V.
39 Cf.: Carta de Alberto Vasconcelos a Xisto. Recife , 31.07.1935. CDP-CPP, Cx. A.V.
40 Cf.: Ofício de Braz Miranda, Diretor da Fazenda, ao Prefeito de Olinda. Olinda, 03.09.1936. AHMAG, Série Ofícios, Cx. 15, Div.02, Est.01c.
41 Cf.: Relatório da Federação dos Pescadores do Estado de Pernambuco. Recife, 31.12.1936. CDP -CPP, Cx. F. PE.
42 Cf.: Relatório da Federação dos Pescadores do Estado de Pernambuco. Recife, 31.12.1936. CDP -CPP, Cx. F. PE Cf.: Thompson, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da Lei Negra . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
43 Cf.: Carta de Alberto Vasconcelos a Elzaman Magalhães, Secretário Geral da CGPB. Recife, 15.05.1933. CDP -CPP, Cx. A. V.; Relatório da Federação das Colônias de Pescadores do Estado de Pernambuco. Recife, 31.12.1936, p.13. CDP -CPP, Cx. F. PE.
44 Cf.: Petição N.874 de Raul de Sá Cavalvanti de Albuquerque à Prefeitura. Olinda, 27.07.1939. AHMAG, Série Petições, Cx. 54, Est. 7, Div.6.
45 Cf.: Entrevista com Antônio Félix… doc. cit.
46 Cf.: “Ata da Assembléia Geral realizada na sede da Colônia de Pescadores Z-4 para tratar do assunto do acordo feito por esta Colônia e o Sr. Manoel Dias dos Santos, para a solução final da Ação Judicial referente aos terrenos ocupados pela mesma”. Olinda, 26.09.1941. CDP -CPP, Cx. Colônia Z-4.
47 Idem. O terreno cedido pelo luso Manoel Dias compreendia 62 lotes com 8m de frente e 27m de fundo, totalizando 13.392 m 2 , localizados na parte alta da rua São Miguel, e 3 lotes de 11m de frente por 30m de fundo (990 m 2 ), na parte baixa da mesma rua, e finalmente 1 lote de 27m de frente e 61m de fundo (1647 m 2 ) a margem da Av. Rio Doce onde seria construído o novo prédio da Colônia. Os terrenos cedidos perfazem um total de 16.029 m 2 , enquanto a faixa de terra onde estavam os mocambos possuía 427m só de frente, além de serem bem mais valorizadas.
48 Cf.: Relatório da Federação das Colônias de Pescadores de Pernambuco. Recife, 1934. CDP -CPP, Cx. F.PE.

Um comentário:

Roberto Silva de Souza disse...

Este artigo é muito bom. Eu o utilizei na minha tese de doutorado sobre Olinda. Parabéns, Alcileide!!!

ÁGUA PRA GENTE

*por William Ferreira A água passa nos canos, mas não é para os canos. É para as pessoas, para os animais, para as lavouras, até mesmo...