8 de maio de 2008

Maio 68: a poética das barricadas


Por: Olgária Matos*

30/04/2008



Das barricadas à festa revolucionária, o maio de 68 foi, nas palavras de Daniel Cohn Bendit, libertário, quer dizer, anti-capitalista e anti-totalitário, anti-comunista e lúdico. O movimento que marcou aquele ano em todo o mundo não considerou o sistema de partidos ou grupos de pressão aqualquer nível, não participou do sistema nem de seus métodos, não teve dirigentes, nem hierarquias, nem disciplina partidária.

Contestou os profissionais da contestação, recusando o jogo que as oposições dominam. Um de seus princípios, pode-se dizer, foi "a vontade geral contraa vontade do general" - no caso, do general-presidente Charles De Gaulle, da França. Mesmo as barricadas não tinham caráter defensivo, foram mais um ato de linguagem com valor de citação. O que os jovens contestaram, classificaram e reconheceram em palavras-de-ordem, grafites, faixas e panfletos foi o mundo desencantado do bem-estar material sem nenhum ideal de espírito.

"Não à sociedade de consumo" foi a crítica do presente, daquele momento, do consumo fetichizado, do trabalho alienado. Era uma crítica que dizia não à jaula de aço, a sociedade espetacular-mercantil, dominada pelo dinheiro, pelo cálculo e pelo interesse que separa os homens em vez de os aproximar. Foi uma contestação à sociedade produtora de mercadorias e de fetiches, de exaustão para uns, de tempos mortos para outros, prisão a céu aberto, uma sociedade do desencantamento psíquico e da cultura, da "desvalorização de todos os valores".
Política do desejo, 68 constituiu-se um princípio de realidade diverso do industrial-produtivista, no qual o capital impõe formas de ser e de pensar. 68 foi contra a estatização do indivíduo, afirmando os direitos dasubjetividade e da espontaneidade criadora e consciente. Contrapôs-se à ideologia que condenava o indivíduo e a subjetividade, reduzindo-os à condição de "individualismo" e "sentimentalismo pequeno-burguês". Com a crítica à ética da abnegação e do sacrifício, a crítica ao mundo desencantado e burocratizado, colocou como lema a verdade triunfante do desejo.

Contra o mundo sem sonho e sem poesia,fez-se o mês de maio, convertendo a prosa em poesia, a sociedade em comunidade política - aquela que quer a felicidade e encontra novas razões da vida em comum. Herdeiro inovador de tradições e revoluções, o maio francês recuperou a cultura como valor de uso da cidade. Reavivou a iconografia da revolução Russa, da guerra civil espanhola e da Frente Popular de 1936, a China maoísta, a Cuba de Fidel, Rosa Luxemburgo e Engels, mas também Lamartine, Rimbaud e Baudelaire. Em 68, não é o desenho que domina e, mesmo nos cartazes, a palavra é soberana. Foi pura desconfiança, pois, da simples inovação gráfica e da retórica das imagens, foi confiança no discurso e na voz.

1968 recusou o mundo em prosa, substituíndo-o pela utopia. Foi o movimento de jovens estudantes e operários à luta entre as classes, preferiram o país de Cocagne e o "Convite à viagem". O levante de maio não consistiu em ativismo político, pois recusou a lógica do vencedor e do vencido, do traumatismo e da morte. Princípio de vida, Eros, felicidade sensual e instintiva. 68 foi uma luta pela vida. Por isso a grande recusa foi a recusa da violência. E a recusa da morte.

Na madrugada de 11 de maio, após o combate nas barricadas, não havia mortos a resgatar. Vale lembrar Maurice Grimaud, chefe da polícia de Paris em 68, responsável pela manutenção da ordem nas jornadas de maio tendo garantido a moderação da polícia, considerando como um teatro o inflamado Quartier Latin. Dez anos depois, publicou suas memórias - En mai fais ce qui te plaît (Em maio faça o que te agrada). Expert na história da cidade, os comportamentos insurgentes não o assustavam, nem lhe ofereciam mistério algum. Por isso, de parte a parte houve a decisão de não matar: "a diferença [das rebeliões do passado], é que a polícia não pretende de maneira alguma matar os defensores das barricadas, nem estes, devo dizê-lo, matar os policiais, muito embora os pedregulhos atirados e as garrafas em chamas não sejam inocentes."
Desta forma, a revolução na revolução de maio foi a mutação da violência, seu deslocamento para o campo simbólico - com o que se criou o descompasso entre as palavras e os fatos. Depois das experiências totalitárias, o maio francês revelou que uma revolução não se reconhece pela tomada do poder, mas por sua potência de sonho. Pois ao totalitarismo, Eros pertence à democracia." (Marcuse).


(*) Olgária Matos é professora de Filosofia Política do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

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