25 de março de 2008

Bolsa-Família: da caverna das elites aos direitos sociais

Artigo
O cerne das críticas ao programa Bolsa-Família despejadas na imprensa pelos “falcões do colunismo” — na expressão do jornalista Fernando de Barros e Silva (“A direita e o lulismo”, Folha de S. Paulo,24-03-2008, página A2) —, restringe-se àquelas do preconceito. São elas, em resumo, camufladas sob a falsa retórica da demagogia, superfluidade, inoperância e ineficácia. Nisso não são nada originais: um tal preconceito encontra-se presente no País ao longo de toda a história brasileira das políticas sociais. Todas, sem exceção, seriam igualmente eleitoreiras, como se não fosse legítimo ao governante pleitear a renovação do voto, pelo reconhecimento de seus feitos no interesse público.
Um dos críticos mais contumazes do programa desqualificou-o em página de jornal, dias atrás, sob o argumento de que o Bolsa-Família representa puro desperdício de recursos públicos, por ser inócuo nas suas condicionalidades: sob o aspecto educação - “não incentiva os pais a manterem os filhos na escola, porque eles já estão na escola” – e sob o aspecto saúde da família – “os pais vacinam os filhos sempre que há oportunidade”. Além de tais inocuidades, não haveria por parte do governo “nenhum controle sobre as condicionalidades”. Levianas que são, tais críticas não merecem resposta.
O leitor de jornal é testemunha de sua recorrência. Na realidade, elas externam o “preconceito contra os pobres”, na justa expressão do presidente Lula. Mais que isso, externam talvez o “estado da arte” dos direitos humanos na sociedade brasileira. Em países de regulação social tardia, como o Brasil, a cultura dos direitos sociais, historicamente rejeitada pelas elites dominantes, é recentíssima – e foi somente no governo Lula que ganhou plena expressão, por se tratar de um governo que tem como projeto político prioritário a universalização da cidadania, instituída pela Constituição Federal de 1988. Lembre-se de que o Brasil reconheceu os direitos sociais e humanos somente no último quartil do século XX, após lutas sangrentas contra ditaduras militares, que, embora impregnadas de nacionalismo, com seu projeto desenvolvimentista de Estado-Nação, não praticaram a universalidade da cidadania.
Por universalização da cidadania entende-se o reconhecimento dos demais direitos humanos, além do direito à cidadania civil e política. Como é sabido, a prática da democracia evoluiu, mediante pressão de movimentos sociais, para formas mais substantivas de realização da cidadania, formas que se constituem no esboço de um Estado Democrático de Direito Social, em oposição ao Estado neoliberal.
Tal evolução corresponde ao reconhecimento sucessivo de três gerações de direitos humanos: os relativos à cidadania civil e política, que se destacam pelo direito às liberdades de locomoção, pensamento, voto, iniciativa, propriedade e disposição da vontade; os relativos à cidadania social e econômica, que se destacam pelo direito à educação, à saúde, à segurança social e ao bem-estar individual e coletivo reconhecido às classes trabalhadoras; os relativos à cidadania pós-material, tais como o direito à qualidade de vida, ao meio ambiente saudável, à tutela dos interesses difusos e ao reconhecimento da diferença.
A universalização da cidadania, de que é expressão o Bolsa-Família, agora complementado pelo programa Territórios da Cidadania –, traduz-se objetivamente, para os beneficiários, na resposta à sua luta pelo abandono do “direito de papel” e pelo reconhecimento de seus direitos no cotidiano. Isso é assumir que o alcance das políticas sociais deve alargar-se, para dar conta das condições efetivas de vida de seus usuários. No caso da educação, por exemplo, o que se requer não é somente um bom professor ou boa sala de aula, mas também boa merenda, bom material escolar, bom transporte, boa saúde e incremento da participação dos pais nos assuntos referentes à formação escolar dos filhos e na gestão pública da escola.
Com a transformação social daí decorrente, tudo isso deve converter-se, ao longo do tempo, em participação crescente do povo no processo decisório e na produção dos atos de governo; em síntese, no fortalecimento da democracia participativa. Esta se caracteriza por um modo de gestão que associa o processo participativo de gestão à qualidade do resultado – qualidade mensurável nos programas sociais do governo Lula pelo incremento da capacidade dos beneficiários de assumir plena responsabilidade individual e coletiva.
Tudo de acordo com a Constituição Federal, segundo a qual as políticas sociais devem ser geridas por conselhos de constituição paritária entre membros do governo e da sociedade civil. Esses representantes dos segmentos da sociedade são eleitos por processos submetidos a controle social (local). É o que determina também o programa Bolsa-Família.
Essa nova forma de gestão vai exigir processos decisórios abertos e tende a provocar uma ruptura com as práticas populistas, embora possam ocorrer manobras políticas para converter tais conselhos em “caixas de ressonância” de grupos no governo. Mesmo sob esse risco, é fato que tais conselhos têm provocado novas questões para a gestão democrática das políticas sociais. Veja-se, a propósito, o papel inovador das experiências do Orçamento Público Participativo como forma de avanço democrático no controle da agenda social estatal.
É sobre tais pressupostos que assenta o projeto político do Partido dos Trabalhadores e do governo Lula. Trata-se, com o Bolsa-Família e demais programas sociais, de refundar o conceito de cidadania. Não para restringi-lo e sim para alargá-lo em seu alcance e inclusão. A noção de estado social constitui-se, para o governo Lula, como uma das novas funções do estado moderno: ocupar-se, em resposta aos movimentos sociais, em atender às exigências do bem-estar social dos cidadãos, de seus direitos sociais, e não mais se limitar às funções tradicionais de regulação. Trata-se de devolver ao controle da sociedade o papel antes atribuído com exclusividade ao mercado.
É nessa medida que o governo Lula expressa s sua rejeição ao estado neoliberal, que se intentou implantar no Brasil no governo FHC, período em que os governantes e seus ideólogos não mediram esforços para difundir a cultura privatista, elitista e autoritária dominante. As políticas sociais de FHC, que se constituíram em instrumento de introdução da racionalidade mercantil na esfera pública, tinham como objetivo reduzir as redes de proteção social a um resíduo da solidariedade pública e preferencialmente privada para com os “miseráveis”.
Em vez de direito social, buscou-se difundir a idéia de ajuda aos pobres, na presunção doutrinária de que a pobreza é tão natural como a ocorrência de laranjas e felinos, e não um produto social, resultante da determinada correlação de forças entre Estado, sociedade e agentes privados. Em vez do reconhecimento público do direito à satisfação de determinadas necessidades sociais, o que se buscou com FHC foi fazê-las refluir para o âmbito privado e individual.
Assim, o direito ao acesso a respostas públicas como condição universal de realização da cidadania foi reduzido ao modelo caricato da subsidiariedade, que somente admite a regulação estatal em último caso; quando ocorrer, por exemplo, a ausência de capacidade da família ou da comunidade de prover tais necessidades. Reduz-se a responsabilidade pública à condição da esmola, para que os indigentes possam sobreviver. Como conseqüência de um tal enfoque, os serviços voltados para os mais pobres tornam-se ainda mais precários, num circulo vicioso perverso, em que a má qualidade e a cobertura deficiente das políticas sociais passam a ser mais um agravante da miserabilidade.
Que o sapateiro não vá além das sandálias: eis o preconceito contra os pobres que se lê por detrás da enxurrada de críticas levianas difundidas pelos “falcões do colunismo”, em dissintonia com a opinião pública brasileira e mundial, que enxerga no Bolsa-Família o mais consistente programa de governo voltado para a realização do direito à cidadania plena.
A combinação entre movimentos sociais, democracia política e democracia social consolida a adoção pelo Brasil das políticas sociais de terceira geração. Este será o maior legado do governo Lula.

Rui Falcão, advogado e jornalista, 64 anos, é deputado estadual em São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores. Foi deputado federal, presidente do PT/SP e secretário de governo na gestão Marta Suplicy.

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