28 de janeiro de 2008

Contra-corrente



Por Izabela Moi, de Paris - especial para a Rets



Aos 74 anos, a belga Hedwige Peemans-Poullet é uma das poucas vozes a se levantar contra a unanimidade que se tornou a história de sucesso do “banqueiro dos pobres”, o prêmio Nobel da Paz de 2006, Muhammad Yunus, de Bangladesh. Com uma história profissional que liga produção do conhecimento à militância pelos direitos das mulheres, Hedwige, hoje professora aposentada, continua à frente da Universidade das Mulheres, organização não-governamental que ajudou a fundar. No governo belga atual, participa do Conselho para a Igualdade de Chances entre Homens e Mulheres, onde preside os grupos “gênero e saúde” e “gênero e regime fiscal”.Em suas críticas ao modelo de Yunus, Hedwige Peeman-Poulet insiste em falar de “micro-endividamento” em vez de “micro-crédito”. Para a feminista, aí é que está a chave da questão. A pesquisadora relembra o contexto onde estão inseridas as iniciativas “de sucesso”. Países em desenvolvimento submetidos às políticas de ajustamento estrutural, onde a liberalização e privatização das economias fizeram com que o acesso aos serviços sociais, como saúde e educação, se tornassem ou mais difíceis, ou mais caros. A necessidade financeira/monetária das populações mais pobres vem primeiro para cobrir essa necessidade básica – de acesso a esses serviços. Para Hedwige, a escolha das mulheres como principal clientela do microcrédito – entre 75% a 100% das experiências ao redor do mundo, 97% no caso do Grameen Bank – é consequência direta de outro fenômeno mundial conhecido como a “feminização da pobreza”. Segundo dados do PNUD, elas representam hoje 70% dos pobres do mundo. Na contra-corrente, há algumas outras vozes que se juntam a Hedwige e que tentam colocar em perspectiva a solução do Grameen Bank, que, após a consagração com o Nobel, parece ter colaborado para deslegitimar todas as outras alternativas de crédito solidário, desde o empréstimo sem usura aos modelos de cooperativas. Entre eles, vale a pena checar os estudos da indiana Prema Gopalan, do jornalista Jeffrey A. Tucker, do indiano Vijay Mahajan, e das pesquisadoras francesas Elisabeth Hofmann e Kamala Marius-Gnanou. A maioria deles mostra quão lucrativo pode ser, para os investidores, organizar o mercado da informalidade nas mãos dos bancos – milhões de pequenas poupanças ou de micro-circulações, também fazem milhões.O Grameen Bank é propriedade do governo de Bangladesh (6%) e de todos os seus emprestadores (94%), que quando contraem um empréstimo são obrigados a comprar pelo menos uma ação do banco, mas não a podem vender depois - nunca. A taxa de juros cobrada é de, em média, 20% por um ano. E, em grupos de cinco pessoas, além de cada indivíduo ter de se comprometer a pagar o empréstimo e dividir esta responsabilidade e garantia com o próprio grupo, assume também que aceita respeitar as chamadas 16 decisões [veja box ao lado] . Hedwige pergunta se algum outro indivíduo em um contexto menos desesperador aceitaria tais condições em nome de um empréstimo financeiro...Como ela e outros críticos sempre lembram, a história clássica que começa com uma mulher que comprou uma vaca e com isso conseguiu alimentar os filhos é ilustrativa e muito utilizada, mas alguém já ouviu o final dela, ou melhor, como foi que essa mesma mulher conseguiu pagar o empréstimo até o final?Em entrevista exclusiva à Rets, Hedwige nos fala do projeto de Yunus, da situação das mulheres pobres e um pouco do que é levantar a voz contra um Nobel da Paz.Rets - Você se surpreendeu quando o Nobel da Paz (2006) foi entregue a Mohamed Yunus, o banqueiro de Bangladesh conhecido como o pai do modelo do microcrédito?Hedwige – De jeito nenhum. Ao contrário, a escolha só veio reforçar meu ceticismo em relação ao Nobel. Yunus tem sido “indicado” pelo establishment internacional há muito tempo, por instituições, personalidades, a imprensa... Há quase 15 anos o ex-presidente americano Bill Clinton deu um pronunciamento em seu favor, justamente dizendo que ele [Yunus] mereceria o Nobel da Paz. Em seu discurso em relação aos “pobres”, Yunus faz coro às idéias de Madre Teresa e se diz contra a legalização do aborto, mas exige que as mulheres que emprestam dinheiro ao Grameen comprometam-se a limitar o tamanho de suas famílias. Yunus comprova que se muitos pobres emprestam pequenas somas o negócio enriquece o banqueiro da mesma forma que se ele tivesse emprestado grandes somas a poucos indivíduos ricos. Em um quarto de século, o Grameen Bank transformou-se numa holding poderosa e Yunus de professor universitário transformou-se em magnata… Rets - Quando e por que você começou a se interessar pelo microcrédito?Hedwige – Logo após a conferência de Beijing, em 1995 [4a. Conferência Mundial sobre as Mulheres]: o discurso oficial apresentava a pobreza das mulheres dos países em desenvolvimento quase como um estado “natural”, como se elas não tivessem ainda conseguido avançar desse estado “original”. Em seguida, entre as discriminações denunciadas, a desigualdade em relação ao direito ao endividamento (quer dizer, a este microcrédito que Yunus tenta provar ao mundo como fazendo parte dos direitos humanos fundamentais) foi apresentado como crucial para sair desse “estado”. Quase todos – entre imprensa, organizações de mulheres, ONGs – adotaram rapidamente o vocabulário dos bancos. E pensar que nós estávamos em plena campanha mundial pelo cancelamento da dívida dos países do Terceiro Mundo!Rets - Quais são suas principais críticas em relação ao Grameen Bank? Hedwige – Minhas críticas dirigem-se ao modelo de microcrédito que funciona como o Grameen Bank. Há diversos aspectos do micro-financiamento com os quais eu posso concordar, ainda que com certa prudência, como por exemplo o endividamento que permite às populações mais pobres obterem sua casa ou um maquinário necessário ao aumento de sua produção ou atividade econômica.Não se fala nunca do contexto em que foi criado o Grameen Bank, em 1976, quando Bangladesh vivia sob uma ditadura, que cancelou os subsídios agrícolas e levou a maior parte da população rural à miséria. Com dinheiro vindo de doações de grandes agências internacionais e de empréstimos a juros baixos (2%) de países desenvolvidos, a única chance da população era recorrer aos empréstimos legalizados de 20% de juros ao ano do Grameen – que na língua oficial do país traduz-se “rural”.As mulheres são 97% dos emprestadotes, mas quantos são mulheres entre os mais de 23.000 funcionários dos bancos? E as 64% de familias que, segundo o proprio site do Grameen, “romperam a linha da pobreza” [pessoas que vivem com renda diária inferior a US$1], em quanto o ganho de renda delas se compara aos salários pagos em média aos funcionários do banco? Isso sem mencionar as 17 empresas do grupo, nascidas nesse período. Além de toda a desproporção e da pressa unânime do mundo em substituir “micro-endividamento” por “micro-crédito”, quando uma pessoa empresta dinheiro do Grameen, assina um acordo de respeitar os 16 mandamentos [veja box ao lado]. O que qualquer um de nós diria se, quando solicitássemos um empréstimo para comprar uma casa ou um carro, nós obrigassem a, em grupo, usar preservativo, escovar os dentes ou a deixar de fumar? Por que práticas tão humilhantes são aceitas quando se trata de mulheres pobres da área rural? É aceitável estabelecer um vínculo entre a obtenção de um empréstimo financeiro e os hábitos individuais na área da saúde ou de costumes locais?Rets - E por que foi o modelo do Grameen Bank que ficou famoso, e ganhou a etiqueta internacional de experiência a ser copiada? Hedwige – Uma das características desse projeto, e de idéias como essa que alcançam uma esfera global, é não levar em conta as nuances da realidade local. Existem várias formas de poupança e crédito socializado, sem cobrança ou remuneração em juros, em várias partes do mundo. As mais conhecidas são as associação rotativas de poupança e crédito e as tontines. Elas incluem os modelos de socialização das mulheres dentro do funcionamento do sistema. O Brasil, por exemplo, conhece o processo de “mutualismo” desde meados do século 19. A desenvoltura do discurso sobre o microcrédito se manifesta também no vácuo deixado pelas (antes) obrigações sociais do Estado. Essas populações pobres endividam-se para garantir o que antes era direito: serviços de saúde, educação, água potável, infra-estruturas de circulação e comunicação, uma habitação decente...Rets - E por que as mulheres são a maioria dos “clientes” de seu banco. Porque são mesmo as melhores pagadoras?Hedwige – De um lado, se você olhar as estatística, verá que as mulheres são a grande maioria na população de pobres do mundo. Por outro lado, com minha visão de feminista, vejo que a idéia de um “empréstimo mínimo” só poderia ir a um “objetivo mínimo”, em mãos das mulheres numa sociedade dominada pelo patriarcalismo. Depois, há a condição de formação dos grupos, talvez mais facilmente manejada entre as mulheres, uma vez que essa mobilização repousa sobre o trabalho voluntário (quero dizer, não-remunerado) a que elas já estão acostumadas.Espontaneamente, as mulheres mais pobres tendem a pedir empréstimos para adquirir os bens de consumo mais urgentes, e deles não sairá uma produção de recursos capaz de reembolsar o crédito. Elas serão orientadas à produção de artesanato ou de produtos agrícolas exportáveis. Seu trabalho, anteriormente destinado à manutenção da família, será então colocado à disposição do mercado externo – e será subjulgado às suas forças.Rets- E o empoderamento das mulheres? Não é uma justificativa válida?Hedwige – O empowerment é uma dessas palavras-chave que crescem como uma bola de neve de significados, fazendo tudo colar por onde passa. No lançamento do modelo de microcrédito, o discurso era que o acesso ao recurso monetário faria com que essas mulheres se tornassem independentes do poder patriarcal, como se esse acesso fosse modificar as relações intra-familiares, por exemplo. Evidentemente, uma falsa idéia.Mas por trás desse argumento há uma questão fundamental: como as mulheres vão articular essa mudança de uma renda “in natura” (normalmente, elas antes produziam os alimentos para auto-consumo da família) a uma renda monetária, basicamente com o mesmo fim? E elas terão de continuar fazendo o trabalho doméstico, que não resulta nem em remuneração nem em produtos que podem ser trocados, além agora de se preocupar com uma produção para vender no mercado externo.Rets - E não há outras formas de financiar, de dar uma ajuda monetária aos pobres, para que isso os impulsione para a sair da pobreza e da miséria?Hedwige – Há várias idéias em curso, muitas se desenvolvendo com sucesso, mas nenhuma com tanta visibilidade como a do Grameen. Há, por exemplo, um novo tipo de projeto que propõe que os governos façam empréstimos a juros zero para os pobres como contra-partida dos descontos fiscais que dão àqueles que podem pagar. Explico melhor: se um governo pode dar isenção ou reduzir o imposto de um certo montante para alguém que vai comprar uma casa, por exemplo, por que não pode oferecer esse mesmo montante, em dinheiro, para que alguém que não tem ainda uma casa não possa começar, com esse empréstimo sem nenhum ônus?Rets - Como é criticar uma unanimidade como Yunus e o Grameen Bank?Hedwige – É duro ter tão pouco crédito quando se rema contra a corrente... Os porta-vozes do mercado têm horror dos grupos que vivem em dissidência com eles ou com o próprio mercado. Assim, hoje em dia, os que se dizem mais humanistas defendem o microcrédito com um novo jargão da “inclusão financeira” dos pobres...

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