3 de fevereiro de 2009

Trabalho Escravo: avanços e dificuldades

Patrícia Audi*

No Brasil, há variadas formas e práticas de trabalho escravo. O conceito de trabalho escravo utilizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) é o seguinte : toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade. Quando falamos de trabalho escravo, falamos de um crime que cerceia a liberdade dos trabalhadores. Essa falta de liberdade se dá por meio de quatro fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados e “gatos” de comportamento ameaçador, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga.Todas as formas de escravidão no Brasil são clandestinas, mas muito difíceis de combater, tendo em vista a dimensão do país, as dificuldades de acesso, a precariedade de comunicação, as limitações de inspeção e as questões legais e institucionais.Apesar de diversas denúncias de trabalho escravo encaminhadas ao Comitê de Expertos da OIT desde 1985, o reconhecimento oficial do problema perante a Organização só ocorreu em 1995. Mesmo assim, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a assumir internacionalmente a existência da escravidão contemporânea . Em 08 de março de 2004, o Governo Brasileiro voltou a ser pioneiro em declarar, agora perante a ONU, a existência de um número estimado de 25 mil trabalhadores escravos.Devido ao reconhecimento internacional dos esforços brasileiros em buscar o cumprimento do disposto nas Convenções nº 29 e nº 105 e na Declaração sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu Seguimento, a OIT e o Governo Brasileiro aprovaram o Projeto de Cooperação Técnica “Combate ao Trabalho Escravo no Brasil”, que iniciou suas atividades em abril de 2002. Com recursos da ordem de US$ 1.700.000,00, o principal objetivo do Projeto é fortalecer os esforços brasileiros na erradicação do trabalho escravo, atuando nas seguintes linhas básicas que direcionam suas atividades:Elaboração e doação ao MTE de um banco de dados sobre trabalho escravo, para que se pudesse conhecer e diagnosticar melhor o problema no país, com a identificação de regiões de incidência, aliciamento, nomes de responsáveis, atividades econômicas envolvidas, reincidência de casos e de trabalhadores.Lançamento de Campanhas Nacional e Estaduais buscando mostrar à sociedade que o problema da escravidão persiste, apesar de 116 anos passados da abolição da escravidão, e com isso envolver, não apenas instituições que atuem nacionalmente, mas também buscar parcerias nos Governos Estaduais e instituições locais para tratar da prevenção e combater o aliciamento de mão-de-obra.Lançamento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo para que compreendesse uma estratégia nacional para a erradicação completa e não apenas de repressão, envolvendo metas, inclusive de prevenção e reinserção de trabalhadoresAtividades de Capacitação e Treinamento dos parceiros envolvidos na repressão, principalmente Ministério Público da União, Ministério do Trabalho e demais operadores do Direito, além de Ongs e Sindicatos.Atividades de Fortalecimento do Grupo Móvel, com a doação de equipamentos e apoio financeiro a outras atividades que facilitem a atuação dos agentes ligados à repressão.Nesses três anos de existência do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo, a OIT registra com satisfação que são inegáveis os avanços obtidos pelo Brasil na luta contra esta chaga. O Brasil é reconhecido internacionalmente, inclusive pela própria OIT, como um dos países que mais têm avançado no objetivo de erradicar o trabalho escravo.Existem inúmeros exemplos para ilustrar a posição que o País ocupa no cenário internacional. Em setembro de 2002 ocorreu a I Jornada de Debates sobre Trabalho Escravo, reunindo, no auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília mais de 350 pessoas, entre Juízes Federais, Juízes do Trabalho, Procuradores da República, Procuradores do Trabalho, Policiais Federais, Policiais Rodoviários Federais e Fiscais do Trabalho. O evento pode ser considerado um marco na luta contra o trabalho escravo, pois a partir de sua realização diversas ações começaram a ocorrer em todas as esferas. Foi incentivada, por exemplo, a criação de grupos de trabalho de combate ao trabalho escravo no Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho e Ordem dos Advogados do Brasil.Dando prosseguimento às discussões iniciadas na Jornada foi referendado e lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 11 de março de 2003, o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, fruto das aspirações de todas as instituições que futuramente comporiam a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE, fundada em agosto de 2003. O Plano, de cuja elaboração a OIT participou ativamente, contém 75 metas de curto, médio e longo prazos que norteiam as ações em um período de quatro anos.O crescimento das atividades e ações contra o trabalho escravo levou, como era de se esperar, a um maior interesse da mídia sobre o tema. Entre 2001 e 2003, o número de notícias sobre o tema na mídia impressa aumentou em 1.900%. Os esforços nessa área prosseguiram com a Campanha Nacional de Comunicação na Câmara dos Deputados. Coordenada pela OIT a Campanha foi concebida, criada, produzida e veiculada de maneira voluntária por agências de publicidade e veículos de comunicação do País, somando um montante de cerca de US$ 7.000.000,00 doados à causa sob a forma de veiculação gratuita.Para nós, a atuação integrada entre todas as instituições nacionais que defendem os direitos humanos é fundamental para prosseguir na busca de resultados expressivos nesta luta. Por isso, sempre estimulamos a discussão do problema nos Estados onde é maior a incidência de trablho escravo, seja na utilização dessa mão-de-obra de forma ilegal, seja no aliciamento de trabalhadores. Além do Pará, já foram lançados planos estaduais no Maranhão, no Piauí e no Mato Grosso O Projeto promove também um processo de diálogo social, envolvendo organizações de trabalhadores e de empregadores.Uma das mais importantes e corajosas iniciativas nesta luta foi o lançamento das “listas sujas” do trabalho escravo. Já são 166 empresas cujos proprietários estão proibidos de receber recursos governamentais para o financiamento dos seus empreendimentos. O número de trabalhadores resgatados nunca foi tão grande, superando a marca de 10 mil pessoas; as condenações também aumentaram, bem como as multas aplicadas aos escravagistas.Um dos avanços mais importantes obtidos na luta contra o trabalho escravo foi a assinatura de um compromisso público pelo qual diversas empresas do ramo siderúrgico que atuam na região de Carajás, no Pará, se comprotem a não mais comprar carvão vegetal de empresas que comprovadamente utilizam mão-de-obra escrava. Tal compromisso, tendo como testemunhas a OIT, o Tribunal Superior do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho, foi assinado no dia 13 de agosto de 2004. O acordo foi intermediado pelo Instituto Ethos, parceiro permanente da OIT em sua missão no Brasil.Essa é a primeira etapa do envolvimento do setor privado, perseguida pela OIT e pelo Instituto Ethos, para que a responsabilidade social das empresas fale mais alto diante desses crimes contra os direitos humanos.Apesar de todos os avanços registrados, ainda persistem algumas dificuldades no caminho. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem acompanhado com atenção toda a luta contra esta prática no Brasil e os esforços da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) para encontrar mecanismos de punição mais rigorosos contra os criminosos.Um desses instrumentos é a Proposta de Emenda Constitucional 438, que prevê a expropriação das terras de todos os proprietários que reconhecidamente utilizam mão-de-obra escrava. Apesar de todos os esforços das instituições que compõem a referida Comissão, a proposta ainda enfrenta forte resistência na Câmara dos Deputados daqueles que de alguma forma defendem a impunidade como forma de manter a escravidão no Brasil.No entanto, ações levadas a cabo por diversos dos parceiros engajados na lusta contra o trabalho escravo, provaram, na prática, que é possível, sim, punir com rigor os que ainda insistem em manter trabalhadores sob o regime de escravidão. De fato, a desapropriação para fins de reforma agrária, promovida pelo Ministério do Desenbvolvimento Agrário, de um empreendimento pertencente a um grupo empresarial que reincidiu várias vezes neste tipo de crime, mostra que a impunidade que normalmente anda de mãos dadas com esses maus empresários pode estar perto do fim.A desapropriação da fazenda Cabaceiras, localizada no Pará, abriu um importante precedente não só no combate à escravidão e à superexploração de mão-de-obra no Brasil como também para garantir a função social da propriedade e do processo de reforma agrária. Além disso, os estudos que estão sendo conduzidos a respeito da cadeia dominial de propriedades incluídas na “lista suja” do trabalho escravo mostram resultados importantes, apontando que, além de explorar mão-de-obra de forma aviltante, os infratores ainda estão grilando terras públicas.O envolvimento dos parceiros e a resposta da sociedade às notícias sobre trabalho escravo mostram que estamos no caminho certo e que muito daquilo que precisava ser feito, tem sido tratado com a responsabilidade e indignação que o assunto merece.

*Patrícia Audi é a coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo da OIT no Brasil

Nenhum comentário:

ÁGUA PRA GENTE

*por William Ferreira A água passa nos canos, mas não é para os canos. É para as pessoas, para os animais, para as lavouras, até mesmo...