9 de dezembro de 2008

Aproveitar a crise para mudar o modelo

Edélcio Vigna*

No turbilhão de crises simultâneas, as populações dos países em desenvolvimento ou pobres são as mais impactadas. O crédito, já escasso, se torna inacessível. O custo de produção se eleva e os preços de venda dos produtos caem. Plantar é desestimulante, colher é prejuízo. As populações urbanas reclamam diante das prateleiras dos supermercados, que elevam seus lucros.
As grandes empresas varejistas obtiveram altos lucros com a venda de alimentos. A Wal-Mart lucrou US$ 4,1 bilhões em 2007; o Carrefour (francesa) teve um lucro de 1,9 bilhão de euros; a Monsanto saltou de um lucro de US$ 255 milhões em 2005 para US$ 993 milhões em 2007; e a ADM (Archer Daniels Midland Company), uma das maiores processadoras agrícolas do mundo, atingiu a marca de US$ 1 trilhão em 2008. .
A Conferência de Alto Nível sobre Segurança Alimentar, realizada este ano pela FAO, em Roma, reconheceu a necessidade de uma intervenção mássica de recursos para equilibrar produção e preços. Mas quase nada foi feito. O mercado continua desregulamentado; as holdings, imperando sobre (e com) os Estados. .
As crises se acumularam de tal forma que é necessário fazer um passo-atrás para recuperarmos a noção de onde estamos. Vamos retornar à década de 90, lembrar do surgimento da Nasdaq  a Bolsa de Valores da Informática -, criada para negociar as ações das empresas de novas tecnologias que brotavam como cogumelos nas garagens e porões norte-americanos. Esse novo espaço de reprodução do capital atraiu, das bolsas tradicionais, os acionistas arrojados que gostam de investimentos de alto risco. Esse deslocamento de capitais foi criando ao longo da década a bolha da informática. No início da década, a Nasdaq dispunha de ações de cerca de 1.100 empresas; no final da década, saltou para mais de 5 mil. Quando a bolha estourou, em 2001, sobraram pouco mais de mil empresas. Voltou ao patamar dos anos noventa. .
Pouco antes do estouro da bolha da informática os grandes investidores redirecionaram seus capitais para a Bolsa de Chicago, que trabalha com o mercado futuro de grãos. Ocorre que o mercado agrícola internacional só foi despontar como um espaço de reprodução acelerada do capital nos meados dos anos noventa, quando lançou seu site na internet. Esse processo linear está sendo esboçado para efeito pedagógico, pois em realidade é descontínuo e, muitas vezes, simultâneo. .
Os investidores começaram a se interessar pelas commodities agrícolas quando perceberam o caráter inversamente proporcional que esses contratos possuem em relação às ações tradicionais. Os preços das ações tradicionais caem quando as empresas entram em crise; já os preços das commodities sobem quando falta produto no mercado. Esse detalhe despertou os investidores que começaram a aplicar nos contratos do mercado de futuro. A estratégia dos especuladores é evitar a entrada de produtos no mercado real para que os preços virtuais subam. Assim, chegamos ao mecanismo disparador da crise dos preços das commodities agrícolas no mercado internacional. .
O investimento das grandes empresas agroalimentares na Bolsa de Chicago fez com que a circulação de capitais saltasse de US$ 20 bilhões em 2002 para US$ 110 bilhões em 2006, US$ 170 bilhões em 2007 e US$ 240 bilhões no início deste ano - um aumento de 1100% em seis anos! .
Neste período de aumento dos preços dos contratos e de grandes ganhos financeiros, sob a sombra da fome de países inteiros, o capital tomou diversos rumos, entre eles a compra de terras nos países em desenvolvimento, a criação de mega-oligopólios verticalizados na cadeia agroalimentar e a inversão em novas formas alternativas de energia como o agrocombustível, entre outros setores. .
Quando os estoques internacionais de alimentos começaram a despencar e o preço das commodities ficou inacessível, tornou-se evidente que a bolha alimentar ia explodir. Os primeiros a sentirem os efeitos da crise foram os agricultores familiares, que sofreram o impacto da alta dos preços dos insumos petroquímicos e das sementes. Em seguida, os consumidores que se quedaram atônitos diante das prateleiras dos supermercados. .
À medida que os lucros recordes eram batidos no mercado agroalimentar percebia-se que a bolha estava chegando ao seu limite. Os grandes investidores, que têm faro de Tiranossauro Rex e informações privilegiadas, pularam para as ações imobiliárias antes de a bolha alimentar estourar. E, creiam, saltaram daquela antes da crise financeira. Após a crise dos alimento veio a crise do mercado imobiliário com o colapso do Lehman Brother, seguido do Merril Lynch e a AIG, que desencadeou o efeito dominó atingindo a Europa. No rastro dessa onda veio o bloqueio do crédito e a forte sensação de insegurança financeira e insegurança alimentar global. .
Nos EUA tem início a execução hipotecária de mais de um milhão de residências. Juntos, Reino Unido, Espanha e França demitem 10 mil por dia. Na Espanha 1,2 mil perdem emprego por dia. As vendas de veículos despencam em 27% nos EUA. A saúde das bolsas oscila semelhante a doentes terminais. Os preços dos alimentos no mercado internacional estacionaram em um patamar elevado e ainda são acrescidos pelo preço dos transportes. O número de pessoas subnutridas eleva-se para cerca de 950 milhões. Na América Latina e no Caribe esse número avança para 51 milhões. .
O G20 reuniu-se em Washington, mas nenhum país se assumiu como pivô da crise. As decisões esbarraram na retórica de dar mais transparência e responsabilidade aos atores financeiros (os mesmo que causaram a crise) e na intenção de reforçar a regulação dos mercados (que o neoliberalismo desmontou nas últimas três décadas) e reduzir as práticas de risco no sistema financeiro (que nenhum banqueiro se prestará a fazer). O mais risível foi o resgate do Fundo Monetário Internacional (FMI) como supervisor do sistema financeiro global, depois que levou à falência diversos países pobres e em desenvolvimento, com a orientação de liberalização dos mercados nacionais. .
As crises ainda não foram superadas, porque é sistêmica e estrutural, e deverão vir em ondas. Diante destes impactos, a democracia deve ser defendida de qualquer solução de força. O governo brasileiro tem a responsabilidade de orientar a população e desenvolver programas para amortizar os choques financeiros e alimentares que virão. A base exportadora deve ser diversificada com maior oferta de bens industriais e de serviços. .
A crise é uma chance para alterar o modelo de produção agrícola e abandonar o uso dos insumos petroquímicos e das sementes transgênicas. As cadeias agroalimentares devem ser libertadoras e não os grilhões dos agricultores. Os programas para a agricultura familiar devem ganhar a centralidade do modelo a fim de produzir mais alimentos. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) deve ser reestruturada e os estoques públicos de alimentos repostos e escoados no mercado para controlar o preço e evitar a especulação. O governo deveria desenvolver um programa de desenvolvimento tecnológico para o biodiesel com o mesmo tempo de maturação do programa Proálcool. Por fim, a política de produção de etanol deveria ser prioritariamente para uso interno, com controle social. .
Edélcio Vigna é assessor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

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